Ficção e Fabricação | Maat

[publicada em versão reduzida na Umbigo Magazine online]

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Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitetura após a Revolução Digital é uma exposição construída por Pedro Gadanho e Sérgio Fazenda Rodrigues. Tem como pretexto a evocação das três décadas que se cumpriram sobre a invenção do Photoshop e a consequente banalização das ferramentas digitais na pós-produção em fotografia. A exposição ocupa a Main Gallery e a Video Room do Maat, fica patente de 20 de março a 19 de agosto de 2019 e apresenta 68 obras de quase cinco dezenas de artistas.

A proposta curatorial organiza a exposição em três secções e distribui-se espacialmente por três espaços, ligados por passagens mais estreitas, onde as obras são apresentadas numa accrochage arejada que reforça a individualidade dos trabalhos e convida a uma visita distendida e fluida.

Campo Expandido

A ideia de fotografia expandida tem sido fundamental para a legitimação institucional do medium fotográfico. Se as primeiras exposições acolhidas no museu ainda assentavam no suporte tradicional, rapidamente os artistas se esforçaram por alargar a materialidade e expandir o trabalho para fora dos limites da impressão em papel. Esta estratégia serviu de mediação e de ponto de intersecção entre os artistas que se interessaram pelo medium fotográfico e os fotógrafos que almejavam um lugar na galeria e no museu. Os trabalhos de Christian Boltanski, onde a fotografia é apenas mais um componente num contexto de objectos e ambientes que adquirem sentido no seu conjunto, são um exemplo histórico do primeiro caso e os de Nan Goldin, com as suas apresentações performativas de slideshows com banda sonora nos clubes nocturnos de Nova Iorque, um caso paradigmático do segundo, que é parcialmente replicado nesta exposição pela peça de Wolfgang Tillmans (Book for Architects, 2014), um diaporama multicanal tratado como uma colagem dinâmica projectada numa blackbox imersiva e dedicada |+|.

Em Ficção e Fabricação encontramos alguns exemplos ortodoxos daquilo a que se tem chamado fotografia expandida. Aglaia Konrad  (Concrete City, 2010) começa por fazer uma citação directa da obra maior de Lina Bo Bardi — o Museu de Arte de São Paulo |+| — aqui representada por modelos reduzidos do cavalete que a arquitecta desenhou para o museu e que se tornou um ícone, não só do design, mas da própria museografia pós-moderna, recorrendo a eles para nos oferecer um conjunto de memórias de matriz fotográfica e emocional materializadas em postais, maioritariamente escritos e circulados.

Numa outra peça Veronika Kellndorfer (Stilted House, 2017) voltamos a encontrar o cavalete, desta vez à escala natural, explorando uma sequência plena de tautologias onde uma fotografia monocromática da Casa de Vidro |+|— também de Lina Bo Bardi —, na sua exuberância de transparências e reflexos, é impressa numa chapa de vidro transparente que, por sua vez, funciona como um diapositivo gigante cuja imagem é projectada na parede da galeria, criando no visitante uma incerteza que abala a confiança na segurança, na finitude e na estabilidade das imagens fotográficas.

Ficção/Narrativas Sociais

Este núcleo diz respeito, sobretudo, ao alargamento e à humanização da fotografia de arquitectura, que não é um traço exclusivo da contemporaneidade (as vanguardas modernistas introduziam com naturalidade a figura humana nas fotografias de arquitectura, implicando a sua acção no sentido das imagens) mas adquiriu uma nova dimensão nas décadas mais recentes, especialmente quando os artistas passara a dirigir a câmera para os edifícios, chegando a uma desidealização a que a fotografia de arquitectura pura e dura não consegue chegar. A fotografia de arquitectura tout court é arquetípica; os exemplos que aqui encontramos, pelo contrário, adquirem um carácter humanizado pela introdução do — e no — quotidiano. O funcionário que Jeff Wall (Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999) introduz na fotografia do edifício |+| faz dela uma fotografia do dia-a-dia (encenado, como acontece invariavelmente em toda a tableau photography de Jeff Wall) onde a arquitectura desempenha um papel importante mas já não é indiscutível que seja a protagonista. Nos trabalhos apresentados nesta secção os edifícios e as personagens lutam pelo protagonismo na imagem.

Um outro caminho identificável nas obras desta secção pode ser caracterizado pelo domínio de uma narrativa embebida nas imagens, um plano de conteúdo prévio (presente nos objectos antes de serem fotografados) que é preponderante e, em muitos casos, a criação da imagem não é mais do que um catalisador para essa mensagem, que frequentemente é política. É o caso evidente do Cinema Karl Marx, fotografado por Mónica de Miranda, que tem um histórico de inversões de sentido: de lugar e símbolo da dolce vita colonial (cuja nostalgia ainda é bastante fracturante e problemática na sociedade portuguesa das gerações retornadas), passando por ser emblema da independência e da afirmação ideológica característica do período que se lhe seguiu e culminando num véu poético, tecido pelo seu definhar funcional e sublinhado pelas enigmáticas figuras femininas assomadas à varanda que a artista coloca na imagem.

Fabricação/Reconstruções Digitais

A secção final da exposição conduz-nos a uma reflexão sobre um novo campo epistemológico e ético que se abriu em 1987, com o Photoshop, e que não cessa de nos inquietar. Se a fotografia sempre se serviu da Retórica |+|  para nos persuadir e manipular, com a naturalização da colagem verosimilhante, que as ferramentas digitais têm aprimorado, o sentido das imagens passou a ser construído através de um processo mais longo que inclui novas etapas e isso é particularmente visível nos trabalhos desta sala.

Os trabalhos de Isabel Brison e Beate Gütschow recorrem à mesma estratégia construtiva mas vão desaguar a lugares fenomenologicamente opostos, embora igualmente emblemáticos do drama contemporâneo da pós-verdade. Ambas as artistas partem de recortes de imagens arquitectónicas, de fragmentos autónomos de edifícios, para, através de uma delicada e cuidadosa montagem, construir novos edifícios. Nos dois casos, o plano da expressão é totalmente credível e só a racionalidade nos pode impedir de os tomar por verdadeiros. Na imagem de Isabel Brison (Maravilhas de Portugal #3, 2008) estamos perante uma construção, que a perceção valida e nos diz que existe, perante uma imagem que representa um edifício que não pode existir, não tanto pela dimensão tectónica e estrutural, mas pelo contra-senso social que nos impede de admitir no mesmo edifício pedaços de realidades socioeconómicas incompatíveis. No trabalho de Beate Gütschow (S Nr.14, 2005) nenhuma racionalidade nos compele a recusar a verdade do edifício que nos é apresentado e apenas a nossa aculturação é capaz de nos advertir que se trata de um edifício moderno que não existe mas que podia, perfeitamente, existir.

Outra exploração da retórica da imagem é evidente nos trabalhos da série WalmArt (2006) de Jonathan Lewis onde, através de um processo tão simples como a pixelização de fotografias do interior de supermercados de marca, somos alertados para o poder redutor que a acção do marketing tem sobre as nossas vidas ao mesmo tempo que somos confrontados com com a solidez impositiva das marcas. Lewis testa os limites da simplificação em busca do estado limite onde as imagens já perderam todo o detalhe e particularidade sem, contudo, perderem a legibilidade e a faculdade de nos remeter para uma situação real da nossa condição alienada de consumidores.

Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitetura após a Revolução Digital é uma excelente oportunidade para ver em Lisboa obras de referência de artistas contemporâneos que usam a fotografia mas, também, para descobrir autores menos conhecidos que nos apontam direcções menos exploradas. Uma das grandes qualidades desta exposição é o carácter descontraído da curadoria, que não faz uma interpretação demasiado literal, tanto do conceito unificador da exposição como dos seus núcleos internos,  e permite que as obras nos convidem a explorar territórios marginais que são, por isso, bastante fecundos.

Fotografias: © antónio castanheira