Pires Vieira. Trash – Lixo de Artista

Se procurarmos um traço de identidade diacrónico no trabalho de Pires Vieira, desembocamos sempre na presença da tensão entre o formal e o conceptual, num equilíbrio idiossincrático meticulosamente trabalhado entre estas duas faces do trabalho artístico. Provavelmente por ter feito o seu período formativo nos anos sessenta, pela sua vivência de Paris naqueles anos de todas as revoluções, as tendências do Minimalismo e da Arte Conceptual desempenharam um papel matricial na sua identidade, uma marca que não perdeu vitalidade até hoje. Pires Vieira gosta de falar sobre o que faz, gosta de evidenciar relações, de fornecer pistas e de justificar as opções que estão na base de cada trabalho. É nas suas palavras que encontramos o desprezo pela metáfora enquanto ferramenta de produção de sentido, enquanto forma barroca de estabelecer ligações entre objectos plásticos e significados mais ou menos intelectualizados. A metáfora foi o inimigo a abater durante o Modernismo e, na realidade, a obra de Pires Vieira encontra abrigo mais facilmente no universo da Tardo-Vanguarda do que no Pós-Modernismo.

A Pires Vieira interessa o paradoxo. O oxímoro formal é evidente — e isso é reforçado pelas suas palavras — num conjunto de obras na primeira sala, onde telas de grande dimensão encostadas à parede estabelecem um estreito diálogo visível com objectos heteróclitos oriundos da indústria e do labor do homem, e o autor faz questão de sublinhar que o seu papel é estritamente formal e, para endentermos o sentido das obras, temos de suspender e ignorar a sua função prática ou qualquer outro valor semântico que o objecto possa transportar: no frigorífico interessa apenas a sua forma de paralelepípedo branco ou nos pneus de tractor nada é relevante para além da percepção de uma espessa circunferência negra.

Apenas de modo fugaz nos anos noventa, Pires Vieira libertou a forma do espartilho da geometria e abriu um lugar temporário à representação mais fenomenológica, criando séries onde a declinação formal é bastante evidente, assumindo um protagonismo firme que transparece para além  da apresentação, sempre marcada pela organização formal que caracteriza o minimalismo a que regressa pouco tempo depois. Este formalismo radical — que interessaria a Greenberg — dá o mote ao resto da exposição, onde as peças escolhidas são invariavelmente tributárias das estratégias espaciais minimalistas.

Mas o interesse de Pires Vieira pelo Minimalismo nunca se limitou à sua dimensão estritamente escultórica; o que o acompanha desde sempre é a reflexão sobre os limites da pintura, sobre a necessidade da sua condição retiniana e, nos trabalhos mais recentes, o seu diálogo com a própria história da pintura. A tridimensionalidade minimalista é uma ferramenta para transgredir o limite bidimensional da pintura, uma estratégia que lhe interessa usar para potenciar os diálogos conceptuais, que são o que realmente é importante no seu trabalho. Temos um caso paradigmático nas peças à esquerda na primeira sala, onde nos deparamos com um diálogo fecundo entre a memória da pintura de Emil Nolde e as peças de parede tão características de Donald Judd. Num gesto de evidente provocação, Pires Vieira obriga-nos a compatibilizar dois momentos particularmente importantes da arte do século vinte e a questionar os extremos mais distantes: por um lado a pintura expressionista de Nolde a que o artista nega a visibilidade, velando-a depois de a pintar (e, aqui, o Expressionismo é o epítome da marca do indivíduo, do indício do trabalho manual e autoral), por outro lado envolve-a na caixa geométrica, numa citação de Judd, um objecto impessoal que recusa a marca de autoria na sua superfíceis. Para reforçar a sua intenção, recorre à ocultação.

A ocultação é um processo recorrente nos trabalhos escolhidos para esta exposição, não apenas como o procedimento automático característico das ocultações surrealistas de Fernando Azevedo, mas como estratégia de silenciamento, de anulação das qualdiades plásticas das pinturas veladas, para tornar evidente e relevante a sua componente conceptual, para marcar o domínio do intelectual sobre o sensível. As pinturas são quase sempre (sempre nesta exposição) destituídas do pictórico e valorizadas na sua dimensão matéria e, paradoxalmente, conceptual. As suas relações formais internas não interessam e, por isso, as telas são enroladas ou cobertas e apresentadas em cuidadas composições tridimensionais que se distribuem no espaço das galeria, de maneira a que sejam percepcionadas de um modo particularmente intencional. Há uma dimensão fenomenológica imprescindível nestes trabalhos e isso foi cuidadosamente tratado pela curadora.

Nesta exposição, como em grande parte do seu percurso, encontramos uma obsessão pela taxinomia, uma predilecção pelo arquivamento ordenado e sistemático, num gesto que desvaloriza o objecto singular e emula a importância do conjunto. É um princípio que encontramos em quase todo o percurso de Pires Vieira e que é evidente na sua simpatia pelo serialismo. A peça que ocupa totalmente a segunda sala é composta por cinquenta pinturas revisitando os nenúfares de Monet mas nenhuma nos é dada a ver porque se encontram enroladas e encerradas em caixas de acrílico incolor. Precisamos apenas de saber que foram pintadas, que ali estão e que se entregam ao visitante apenas pelo gesto classificador que as dispôs em cinco fiadas de dez caixas (ou dez fiadas de cinco caixas, que a ordem de apreensão não foi estipulada), mais uma vez numa atitude puramente minimalista. A ordem taxinómica surge ainda mais uma vez na sala final, onde conjuntos de telas, encerradas e parcialmente escondidas umas pelas outras, são classificadas e apresentadas em grupos colocados em carros de transporte, simultaneamente numa alegoria do atelier e num impasse de galeria durante a montagem, chamando a atenção para o processo que articula o momento e o lugar da produção com o momento e o lugar de exposição.

Esta exposição, apesar de não ser declaradamente uma antologia (que, pela dimensão nunca chegaria a ser), tem a feliz capacidade de nos colocar com grande evidência perante os caminhos e estratégias mais importantes e distintivos do trabalho de Vítor Pires Vieira.

—————————-

Pires Vieira
Trash — Lixo de Artista
Museu Colecção Berardo, piso 0, Lisboa
04|07|2019—06|10|2019
Curadoria de Sandra Vieira Jürgens

Ficção e Fabricação | Maat

[publicada em versão reduzida na Umbigo Magazine online]

english short version

Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitetura após a Revolução Digital é uma exposição construída por Pedro Gadanho e Sérgio Fazenda Rodrigues. Tem como pretexto a evocação das três décadas que se cumpriram sobre a invenção do Photoshop e a consequente banalização das ferramentas digitais na pós-produção em fotografia. A exposição ocupa a Main Gallery e a Video Room do Maat, fica patente de 20 de março a 19 de agosto de 2019 e apresenta 68 obras de quase cinco dezenas de artistas.

A proposta curatorial organiza a exposição em três secções e distribui-se espacialmente por três espaços, ligados por passagens mais estreitas, onde as obras são apresentadas numa accrochage arejada que reforça a individualidade dos trabalhos e convida a uma visita distendida e fluida.

Campo Expandido

A ideia de fotografia expandida tem sido fundamental para a legitimação institucional do medium fotográfico. Se as primeiras exposições acolhidas no museu ainda assentavam no suporte tradicional, rapidamente os artistas se esforçaram por alargar a materialidade e expandir o trabalho para fora dos limites da impressão em papel. Esta estratégia serviu de mediação e de ponto de intersecção entre os artistas que se interessaram pelo medium fotográfico e os fotógrafos que almejavam um lugar na galeria e no museu. Os trabalhos de Christian Boltanski, onde a fotografia é apenas mais um componente num contexto de objectos e ambientes que adquirem sentido no seu conjunto, são um exemplo histórico do primeiro caso e os de Nan Goldin, com as suas apresentações performativas de slideshows com banda sonora nos clubes nocturnos de Nova Iorque, um caso paradigmático do segundo, que é parcialmente replicado nesta exposição pela peça de Wolfgang Tillmans (Book for Architects, 2014), um diaporama multicanal tratado como uma colagem dinâmica projectada numa blackbox imersiva e dedicada |+|.

Em Ficção e Fabricação encontramos alguns exemplos ortodoxos daquilo a que se tem chamado fotografia expandida. Aglaia Konrad  (Concrete City, 2010) começa por fazer uma citação directa da obra maior de Lina Bo Bardi — o Museu de Arte de São Paulo |+| — aqui representada por modelos reduzidos do cavalete que a arquitecta desenhou para o museu e que se tornou um ícone, não só do design, mas da própria museografia pós-moderna, recorrendo a eles para nos oferecer um conjunto de memórias de matriz fotográfica e emocional materializadas em postais, maioritariamente escritos e circulados.

Numa outra peça Veronika Kellndorfer (Stilted House, 2017) voltamos a encontrar o cavalete, desta vez à escala natural, explorando uma sequência plena de tautologias onde uma fotografia monocromática da Casa de Vidro |+|— também de Lina Bo Bardi —, na sua exuberância de transparências e reflexos, é impressa numa chapa de vidro transparente que, por sua vez, funciona como um diapositivo gigante cuja imagem é projectada na parede da galeria, criando no visitante uma incerteza que abala a confiança na segurança, na finitude e na estabilidade das imagens fotográficas.

Ficção/Narrativas Sociais

Este núcleo diz respeito, sobretudo, ao alargamento e à humanização da fotografia de arquitectura, que não é um traço exclusivo da contemporaneidade (as vanguardas modernistas introduziam com naturalidade a figura humana nas fotografias de arquitectura, implicando a sua acção no sentido das imagens) mas adquiriu uma nova dimensão nas décadas mais recentes, especialmente quando os artistas passara a dirigir a câmera para os edifícios, chegando a uma desidealização a que a fotografia de arquitectura pura e dura não consegue chegar. A fotografia de arquitectura tout court é arquetípica; os exemplos que aqui encontramos, pelo contrário, adquirem um carácter humanizado pela introdução do — e no — quotidiano. O funcionário que Jeff Wall (Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999) introduz na fotografia do edifício |+| faz dela uma fotografia do dia-a-dia (encenado, como acontece invariavelmente em toda a tableau photography de Jeff Wall) onde a arquitectura desempenha um papel importante mas já não é indiscutível que seja a protagonista. Nos trabalhos apresentados nesta secção os edifícios e as personagens lutam pelo protagonismo na imagem.

Um outro caminho identificável nas obras desta secção pode ser caracterizado pelo domínio de uma narrativa embebida nas imagens, um plano de conteúdo prévio (presente nos objectos antes de serem fotografados) que é preponderante e, em muitos casos, a criação da imagem não é mais do que um catalisador para essa mensagem, que frequentemente é política. É o caso evidente do Cinema Karl Marx, fotografado por Mónica de Miranda, que tem um histórico de inversões de sentido: de lugar e símbolo da dolce vita colonial (cuja nostalgia ainda é bastante fracturante e problemática na sociedade portuguesa das gerações retornadas), passando por ser emblema da independência e da afirmação ideológica característica do período que se lhe seguiu e culminando num véu poético, tecido pelo seu definhar funcional e sublinhado pelas enigmáticas figuras femininas assomadas à varanda que a artista coloca na imagem.

Fabricação/Reconstruções Digitais

A secção final da exposição conduz-nos a uma reflexão sobre um novo campo epistemológico e ético que se abriu em 1987, com o Photoshop, e que não cessa de nos inquietar. Se a fotografia sempre se serviu da Retórica |+|  para nos persuadir e manipular, com a naturalização da colagem verosimilhante, que as ferramentas digitais têm aprimorado, o sentido das imagens passou a ser construído através de um processo mais longo que inclui novas etapas e isso é particularmente visível nos trabalhos desta sala.

Os trabalhos de Isabel Brison e Beate Gütschow recorrem à mesma estratégia construtiva mas vão desaguar a lugares fenomenologicamente opostos, embora igualmente emblemáticos do drama contemporâneo da pós-verdade. Ambas as artistas partem de recortes de imagens arquitectónicas, de fragmentos autónomos de edifícios, para, através de uma delicada e cuidadosa montagem, construir novos edifícios. Nos dois casos, o plano da expressão é totalmente credível e só a racionalidade nos pode impedir de os tomar por verdadeiros. Na imagem de Isabel Brison (Maravilhas de Portugal #3, 2008) estamos perante uma construção, que a perceção valida e nos diz que existe, perante uma imagem que representa um edifício que não pode existir, não tanto pela dimensão tectónica e estrutural, mas pelo contra-senso social que nos impede de admitir no mesmo edifício pedaços de realidades socioeconómicas incompatíveis. No trabalho de Beate Gütschow (S Nr.14, 2005) nenhuma racionalidade nos compele a recusar a verdade do edifício que nos é apresentado e apenas a nossa aculturação é capaz de nos advertir que se trata de um edifício moderno que não existe mas que podia, perfeitamente, existir.

Outra exploração da retórica da imagem é evidente nos trabalhos da série WalmArt (2006) de Jonathan Lewis onde, através de um processo tão simples como a pixelização de fotografias do interior de supermercados de marca, somos alertados para o poder redutor que a acção do marketing tem sobre as nossas vidas ao mesmo tempo que somos confrontados com com a solidez impositiva das marcas. Lewis testa os limites da simplificação em busca do estado limite onde as imagens já perderam todo o detalhe e particularidade sem, contudo, perderem a legibilidade e a faculdade de nos remeter para uma situação real da nossa condição alienada de consumidores.

Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitetura após a Revolução Digital é uma excelente oportunidade para ver em Lisboa obras de referência de artistas contemporâneos que usam a fotografia mas, também, para descobrir autores menos conhecidos que nos apontam direcções menos exploradas. Uma das grandes qualidades desta exposição é o carácter descontraído da curadoria, que não faz uma interpretação demasiado literal, tanto do conceito unificador da exposição como dos seus núcleos internos,  e permite que as obras nos convidem a explorar territórios marginais que são, por isso, bastante fecundos.

Fotografias: © antónio castanheira

Sparr | David Grades

[folha de sala] 

A primeira coisa que precisamos de saber sobre sparr, o trabalho que David Grades apresenta no minimália, é que se trata de uma série de retratos de lutadores, de atletas envolvidos em desportos de combate, orientado por António Júlio Duarte num projecto do Atelier de Lisboa.

É importante saber, também, que David Grades não instalou um photo booth à saída do balneário, onde os atletas passavam a caminho do ringue, para fazer uma sequência mecânica de retratos com uma uniformidade de parâmetros técnicos que fizesse o conjunto sobrepor-se a cada unidade. David Grades fotografou os atletas individualmente em momentos distintos ao longo de um ano e em muitos lugares diferentes e, é fundamental, sabe o nome de cada um.

Cada retrato é um projecto em si, do mesmo modo que cada pessoa fotografada é um indivíduo complexo, único, relacional, com uma identidade e com um passado exclusivo. Se em August Sander o que era importante era o traço comum, o que havia de geral ou de universal nas pessoas retratadas — e que por isso não tinham nome, tinham título —, neste trabalho a importância está no traço distintivo, na humanidade, no que cada lutador tem de particular, de individual e não de tipológico.

Teria sido fácil, se David Grades o tivesse pretendido, explorar o pitoresco dos rostos suados, marcados, massacrados e desalinhados depois do combate. Seria fácil impressionar quem vê as fotografias pelos traços deixados pela força do confronto, pelo espectáculo da violência que faria dos retratos imagens indiciais de uma actividade ou até pelas tatuagens tão banais e quase obrigatórias neste universo. Mas não foi isso que interessou o artista. O que ele nos traz aqui são pessoas tão comuns quanto nós, pessoas que podemos encontrar na mercearia, que têm a sua identidade construída e isso é visível nos pequenos detalhes que os individualizam.

Ao contrário do que é mais frequente no retrato, onde o espaço tem o seu próprio lugar, onde, no plano da expressão, encontramos um espaço bidimensional que envolve a figura e lhe permite respirar, nestes retratos temos um primeiríssimo primeiro plano, um enquadramento tão fechado que faz com que a figura seja o todo. David Grades apresenta-nos uma visão crua e literal dos seus sujeitos, um olhar que, pela sua neutralidade, torna evidente a condição humana de cada um dos lutadores.

Sparr | David grades
Minimália, Lisboa maio de 2018

https://davidgrades.myportfolio.com/