Art Basel 2019

© antonio castanheira

Fotografias: @ António Castanheira

[publicado em versão reduzida na Umbigo Magazine de julho de 2019]
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A Art Basel, um ano antes de celebrar cinquenta anos de feira, continua a ser o melhor lugar para tomar o pulso à arte contemporânea. Nesta edição, cerca de três centenas de galerias, onde se contam as melhores e maiores da actualidade, ocupam quase trinta mil metros quadrados do Messe Basel — edifício de referência desenhado originalmente nos anos cinquenta por Hans Hoffmann e ampliado em 2013 pela reputada dupla de Basel Herzog & De Meuron — para mostrar a quase cem mil visitantes o trabalho de mais de quatro mil artistas.

Há cerca de um ano, David Zwirner, provavelmente o mais poderoso galerista dos últimos anos, defendeu numa conferência em Berlim que as galerias maiores deveriam subsidiar a participação das galerias menores nas feiras de arte. Rapidamente a Frieze e a Art Basel tornaram pública a sua vontade de desenvolver um sistema que respondesse positivamente a esta preocupação. Este ano a Art Basel inaugurou uma tabela de preços “deslizante” onde um stand pequeno, de 25m2, custa CHF 760 (± 670 €) por metro quadrado e um grande, de 124m2, custa CHF 905 (± 800 €). O preço fixo de 2018 foi CHF 830 (± 740 €). Adicionalmente, foi criado um desconto  que permitiu uma poupança de vinte por cento no preço de metro quadrado às galerias que participam pela primeira vez no sector principal. Nos sectores Statements e Feature, que funcionam como porta de entrada na feira para as galerias mais jovens, as poupanças situaram-se entre os dez e os vinte mil euros por stand, o que viabilizou a presença de alguns projectos incapazes de suportar o custo das edições anteriores. Segundo as previsões da organização, o sistema deslizante deve proporcionar às galerias menores uma poupança de 13%, que é equilibrado por uma penalização das maiores em 4%. Para além das implicações no negócio, é importante assinalar que este gesto reflecte uma preocupação de moralização e humanização do mercado da arte e marca uma diferença face ao que se passou, desde pelo menos os anos oitenta, em que o valor da arte disparou cavando um fosso cada vez mais difícil de transpor entre o grupo de artistas e galerias no topo e o grupo que, na base da escala, lutava por visibilidade e por um pedaço de mercado, criando as condições para que as galerias mais poderosas canibalizassem impunemente as mais frágeis aliciando os seus artistas mais promissores com um lugar num mercado de outro nível.

De um ponto de vista puramente estético, estas mudanças na componente financeira trouxeram à feira uma frescura nas propostas artísticas e contribuíram para mitigar uma das suas fraquezas: a predominância de um certo carácter doméstico e domesticado das peças que as galerias costumam trazer a Basel.

À semelhança das últimas edições Art Basel organizou-se em nove sectores, cada um com as suas especificidades mas todos contribuindo para a montra abrangente que é a feira.

Parcours

Samuel Leuenberger, curador nascido em Basel e fundador do espaço independente Salts, que dá a conhecer jovens artistas suíços e estrangeiros, preparou pelo quarto ano consecutivo a secção Parcours, um projecto que levou a arte contemporânea para fora do edifício da Messe e distribuiu um conjunto de duas dezenas de trabalhos nas imediações da Münsterplatz, no centro histórico de Basel. Parcours reflecte a escolha eclética do curador e tanto mostra trabalhos de talentos emergentes e pouco conhecidos do público da feira, como de artistas de créditos firmados.

«Conceber o Parcours começa sempre por uma caminhada no centro histórico de Basel — é uma coisa que eu faço com frequência mas, aqui, trata-se de uma caminhada de natureza diferente. Preocupo-me com o que significa implantar uma obra de arte no coração palpitante de Basel e, ao mover-me sem pressa, tento identificar as alterações no tecido urbano, como se levasse a cabo um levantamento anual.» Mas o curador adverte-nos que «Parcours não é uma exposição de escultura ao ar livre mas sim um projecto de dimensão urbana que responde à cidade como uma entidade cívica» e isto é fácil de perceber quando pensamos o quanto o contexto de cada uma das peças contribui para a construção do seu sentido mas também para a alteração que a sua presença torna efectiva na percepção de cada um dos lugares.

O percurso, que é derivativo e não linear, tem início com Staircase de Caitlin Keogh, uma intervenção site-specific estrita em que a artista transforma a escadaria do Teatro de Basel num trompe l’oeil dinâmico e poderoso, capaz transformar a percepção que temos da praça fronteira onde pontifica uma belíssima escultura de Richard Serra de 1972. Mais do que de uma peça instalada num lugar, trata-se de uma fusão que resulta numa única entidade indestrinçável.

Esta décima edição de Parcours tem como tema The Impossibility of Being a Sculpture e Samuel Leuenberger procurou questionar as intervenções dos artistas pensando-as enquanto objectos deslocados. O trabalho de Ron Terada You Have Left The American Sector , apresentado originalmente em 2011 no MCA de Chicago, faz parte de uma série de declinações do histórico placard colocado na fronteira este-oeste em Berlim aquando da divisão que se seguiu à segunda guerra mundial, série que desenvolve uma reflexão em torno das implicações sociais, políticas das divisões geográficas. A peça ganha um especial relevo pela sua implantação no extremo sudoeste da Mittlere Rheinbrücke, a ponte sobre o Reno construída em 1226, que sempre dividiu a cidade socialmente, com as classes sociais elevadas de um lado e as classes trabalhadoras do outro.

Uma outra estratégia espacial resulta da colocação da peça Dancing Cities (2018) de Dan Graham no centro da Münsterplatz. A peça faz parte de uma linha de trabalho apresentada pela primeira vez na La Biennale de 1976 e move-se na instável fímbria de território onde a escultura e arquitectura se interpenetram. A peça, pela sua escala, forma e materialidade, modifica totalmente o espaço da praça, enriquecendo a percepção pela fluidez interior/exterior, pelas transparências que, apesar do vidro incolor, nunca são absolutas e pela adição dos reflexos e refracções que multiplicam as presenças na percepção contrariando o vazio original do espaço urbano ao mesmo tempo que desafiam o cânone do Minimalismo onde o trabalho se inscreve.

Unlimited

Unlimited é a secção da Art Basel que, desde 2000, permite às galerias apresentar projectos que transcendem as limitações espaciais de um stand de feira tradicional. Com curadoria do nova-iorquino Gianni Jetzer, pelo oitavo e último ano, Unlimited apresenta um amplo espectro de trabalhos — de peças históricas de grande significado, como a instalação Penetrável Filtro (1972), de Hélio Oiticica, e Syntagma (1983), de Valie Export a Pharmacie (2019) de Pedro Tropa  — cobrindo materialidades e modos de expressão tão díspares como esculturas monumentais, pinturas de grande dimensão, projecções de vídeo imersivas, vastas séries fotográficas ou, mesmo, performances. Untitled é a secção da Art Basel com maior capacidade de surpreender, a secção que mais apela ao público que visita a feira sem comprar mas também ao público profissional institucional. É aqui que curadores e directores de instituições têm oportunidade de se confrontar com os trabalhos mais arrojados, não só dos artistas mais activos hoje mas, também, com trabalhos históricos que raramente foram mostrados e é aqui que os coleccionadores institucionais (ou particulares de grande envergadura) encontram os formatos que transcendem a escala doméstica.

A Art Basel, por todo o seu perfil e contexto, não costuma ser palco de intervenções polémicas ou com um cunho político evidente, mas o movimento viral #MeToo, com o reconhecimento do seu poder a ser reforçado pelo terceiro lugar na mais recente lista Power 100 da ArtReview — um ranking das personalidades mais poderosas no mundo arte em cada ano — teria de acabar por fazer a sua aparição na feira. Andrea Bowers, artista americana nascida em 1965, desenvolve um projecto de arquivo e documentação do #MeToo desde que o movimento começou a ganhar escala. A artista trouxe a Basel a instalação monumental Open Secret (2018) , uma iteração do projecto-mãe — que é uma colecção de pendões documentais, cada um exclusivamente dedicado a um acusado, preenchidos com imagens e textos que registam o teor das acusações e as respostas públicas que foram dadas. Esta peça era um contraponto ao ambiente geral que se vivia no pavilhão e o seu sucesso junto do público era atestado pela quantidade de gente que se detinha longamente na leitura dos textos.

Contrastando com a solenidade do trabalho de Andrea Bowers, o grego Andreas Angelidakis apresentou na feira Post-Ruin (Pink), 2019, uma instalação escultural dinâmica decorrente da série Demos, originalmente produzida para a Documenta 14 de 2017, composta por fragmentos arquitectónicos primários em esponja forrada a vinil que os visitantes reconfiguravam e usavam para se sentar ou deitar numa dessacralização da obra de arte.

Outra peça de grande impacto era a de Daniel Knorr, Laundry (2019). Um sistema automático de lavagem de automóveis foi transformado para, num happening a acontecer na feira, aspergir mecanicamente tinta sobre formas de automóveis construídas por telas, constituindo uma reflexão bem humorada sobre o passado pop da arte, sobre a pintura enquanto disciplina e sobre a mercantilização que impregna todas as vertentes da vida quotidiana.

Sempre surpreendente e arrojado, Paul McCarthy apresentou uma produção complexa de realidade virtual que provocou longas filas de espera por um lugar na sala onde o público podia aceder aos terminais de VR. Coach Stage Stage Coach VR experiment Mary and Eve (2017) prossegue as experiências que McCarthy tem desenvolvido e, a partir da captura de movimentos de duas actrizes, constrói um jogo psicológico alucinante que culmina numa viagem psicossexual de violação e humilhação.

Statements

Até 1995 a Art Basel tinha um sector de entrada, o Young Galleries. Em 1996 foi substituído pelo Statements, um espaço onde se concentram duas dezenas de galerias que apresentam obrigatoriamente exposições individuais de artistas emergentes, que encontram aqui o trampolim de visibilidade indispensável ao seu crescimento. Por esta secção passaram nomes como William Kentridge, Mariko Mori, Pierre Huyghe e o portugês João Onofre. Este ano, 18 galerias apresentaram as suas propostas. Em cada edição, há um prémio de 30 mil francos suíços (± 27 mil euros) atribuído  pela seguradora suíça Baloize ao melhor projecto e os trabalhos são oferecidos a instituições relevantes. Este ano o prémio foi atribuído a Xinyi Cheng e Giulia Cenci e as obras oferecidas à National Galerie-Staatliche Museen de Berlin e ao MUDAM no Luxemburgo.

Naturalmente, Statements é o sector da feira com trabalhos menos canónicos e aquele onde os visitantes podem encontrar obras mais disruptivas (ainda que sem o fôlego da grande escala dos que estão no Unlimited). A proposta da galeria Jan Kaps, de Colónia, que ocupava um stand de esquina ostensivamente aberto apenas com as duas paredes posteriores, incomodava quem passava com o trabalho perturbador de Berenice Olmedo — artista mexicana nascida em 1987 e que trabalha na Cidade do México. Anthroprosthetic: Or, the Prosthesis as Homo Genesis, um projecto mostrado originalmente numa forma um pouco distinta na galeria em 2018, reúne um conjunto de próteses ortopédicas usadas por pessoas com recursos limitados do seu país, objectos que preservam traços físicos dos seus utilizadores e que, num gesto duchampiano actualíssimo, interpelam e obrigam a reflectir sobre a condição humana, sobre a noção de normalidade, sobre a fragilidade do corpo e sobre a importância que a fisiologia tem na preservação da identidade do ser humano. No meio da euforia que caracteriza a feira, este gesto metonímico de Berenice Olmedo obriga-nos a uma travagem violenta e conduz a uma introspecção violenta.

Galerias

O maior sector da feira é o mais tradicional. Nesta edição, 225 galerias repetiram a presença, incluindo as portuguesas Cristina Guerra e Pedro Cera (que teve o melhor resultado de sempre), e 7 galerias estrearam-se no sector principal depois de terem estado presentes em edições anteriores nos sectores Feature e Statements. A fórmula dominante é conhecida: a esmagadora maioria das galerias apresenta uma ou duas peças de cada um dos artistas que escolhe cuidadosamente em função das expectativas de sucesso — comercial ou de afirmação internacional.

No entanto, 2019 trouxe algumas surpresas e maior terá sido, porventura, a galeria londrina Marlborough que apresentou um stand exclusivamente com obras de Paula Rego. É raro acontecer mas o momentum actual da artista suporta a decisão do galerista. Paula Rego terminou recentemente uma exposição monográfica na L’Orangerie em Paris, inaugurou no mesmo fim‑de‑semana da feira uma importante exposição individual na MK Gallery em Milton Keynes e, muito mais importante, acabou de ser anunciada uma exposição individual de grande alcance na Tate Britain para 2021. Paula Rego, aos 84 anos, surpreendeu ainda os visitantes com a apresentação das primeiras peças tridimensionais da sua carreira. A artista já tinha produzido peças escultóricas com a função de adereço/modelo para o seu trabalho de atelier mas nunca tinha apresentado como trabalho final uma escultura. No stand da Marlborough estavam duas esculturas de 2019 — Gluttony e Pride — à venda por valores a rondar os 300 mil euros — e uma peça que transitou do atelier para a galeria, Prince Pig (2006-19).

O resto do sector principal foi bastante conservador e o grande atractivo continua a ser a possibilidade de encontrar um pouco por toda a feira obras dos artistas mais importantes da cena contemporânea. Notou-se um decréscimo na presença da fotografia — o que se pode entender por, simultaneamente, estar a acontecer a Photo Basel — e a consolidação do crescimento da pintura. A feira deste ano também não se destacou pela abundância de obras-troféu. A peça mais mais visível e mais discutida foi Sacred Heart,  da série Celebration de Jeff Kooons, mostrada no stand da Gagosian com um segurança fardado em cada flanco e, embora a galeria não tenha divulgado o preço, corriam rumores que rondaria os 15 milhões de dólares. Jeff Koons tinha ainda uma outra peça icónica à venda no stand da Mnuchin — esta com preço conhecido de 10 milhões — o busto Louis XIV, da série de 1986 a que pertence Rabbit que recentemente foi vendida em leilão por 91 milhões de euros e estabeleceu um novo record para um artista vivo.