Pires Vieira. Trash – Lixo de Artista

Se procurarmos um traço de identidade diacrónico no trabalho de Pires Vieira, desembocamos sempre na presença da tensão entre o formal e o conceptual, num equilíbrio idiossincrático meticulosamente trabalhado entre estas duas faces do trabalho artístico. Provavelmente por ter feito o seu período formativo nos anos sessenta, pela sua vivência de Paris naqueles anos de todas as revoluções, as tendências do Minimalismo e da Arte Conceptual desempenharam um papel matricial na sua identidade, uma marca que não perdeu vitalidade até hoje. Pires Vieira gosta de falar sobre o que faz, gosta de evidenciar relações, de fornecer pistas e de justificar as opções que estão na base de cada trabalho. É nas suas palavras que encontramos o desprezo pela metáfora enquanto ferramenta de produção de sentido, enquanto forma barroca de estabelecer ligações entre objectos plásticos e significados mais ou menos intelectualizados. A metáfora foi o inimigo a abater durante o Modernismo e, na realidade, a obra de Pires Vieira encontra abrigo mais facilmente no universo da Tardo-Vanguarda do que no Pós-Modernismo.

A Pires Vieira interessa o paradoxo. O oxímoro formal é evidente — e isso é reforçado pelas suas palavras — num conjunto de obras na primeira sala, onde telas de grande dimensão encostadas à parede estabelecem um estreito diálogo visível com objectos heteróclitos oriundos da indústria e do labor do homem, e o autor faz questão de sublinhar que o seu papel é estritamente formal e, para endentermos o sentido das obras, temos de suspender e ignorar a sua função prática ou qualquer outro valor semântico que o objecto possa transportar: no frigorífico interessa apenas a sua forma de paralelepípedo branco ou nos pneus de tractor nada é relevante para além da percepção de uma espessa circunferência negra.

Apenas de modo fugaz nos anos noventa, Pires Vieira libertou a forma do espartilho da geometria e abriu um lugar temporário à representação mais fenomenológica, criando séries onde a declinação formal é bastante evidente, assumindo um protagonismo firme que transparece para além  da apresentação, sempre marcada pela organização formal que caracteriza o minimalismo a que regressa pouco tempo depois. Este formalismo radical — que interessaria a Greenberg — dá o mote ao resto da exposição, onde as peças escolhidas são invariavelmente tributárias das estratégias espaciais minimalistas.

Mas o interesse de Pires Vieira pelo Minimalismo nunca se limitou à sua dimensão estritamente escultórica; o que o acompanha desde sempre é a reflexão sobre os limites da pintura, sobre a necessidade da sua condição retiniana e, nos trabalhos mais recentes, o seu diálogo com a própria história da pintura. A tridimensionalidade minimalista é uma ferramenta para transgredir o limite bidimensional da pintura, uma estratégia que lhe interessa usar para potenciar os diálogos conceptuais, que são o que realmente é importante no seu trabalho. Temos um caso paradigmático nas peças à esquerda na primeira sala, onde nos deparamos com um diálogo fecundo entre a memória da pintura de Emil Nolde e as peças de parede tão características de Donald Judd. Num gesto de evidente provocação, Pires Vieira obriga-nos a compatibilizar dois momentos particularmente importantes da arte do século vinte e a questionar os extremos mais distantes: por um lado a pintura expressionista de Nolde a que o artista nega a visibilidade, velando-a depois de a pintar (e, aqui, o Expressionismo é o epítome da marca do indivíduo, do indício do trabalho manual e autoral), por outro lado envolve-a na caixa geométrica, numa citação de Judd, um objecto impessoal que recusa a marca de autoria na sua superfíceis. Para reforçar a sua intenção, recorre à ocultação.

A ocultação é um processo recorrente nos trabalhos escolhidos para esta exposição, não apenas como o procedimento automático característico das ocultações surrealistas de Fernando Azevedo, mas como estratégia de silenciamento, de anulação das qualdiades plásticas das pinturas veladas, para tornar evidente e relevante a sua componente conceptual, para marcar o domínio do intelectual sobre o sensível. As pinturas são quase sempre (sempre nesta exposição) destituídas do pictórico e valorizadas na sua dimensão matéria e, paradoxalmente, conceptual. As suas relações formais internas não interessam e, por isso, as telas são enroladas ou cobertas e apresentadas em cuidadas composições tridimensionais que se distribuem no espaço das galeria, de maneira a que sejam percepcionadas de um modo particularmente intencional. Há uma dimensão fenomenológica imprescindível nestes trabalhos e isso foi cuidadosamente tratado pela curadora.

Nesta exposição, como em grande parte do seu percurso, encontramos uma obsessão pela taxinomia, uma predilecção pelo arquivamento ordenado e sistemático, num gesto que desvaloriza o objecto singular e emula a importância do conjunto. É um princípio que encontramos em quase todo o percurso de Pires Vieira e que é evidente na sua simpatia pelo serialismo. A peça que ocupa totalmente a segunda sala é composta por cinquenta pinturas revisitando os nenúfares de Monet mas nenhuma nos é dada a ver porque se encontram enroladas e encerradas em caixas de acrílico incolor. Precisamos apenas de saber que foram pintadas, que ali estão e que se entregam ao visitante apenas pelo gesto classificador que as dispôs em cinco fiadas de dez caixas (ou dez fiadas de cinco caixas, que a ordem de apreensão não foi estipulada), mais uma vez numa atitude puramente minimalista. A ordem taxinómica surge ainda mais uma vez na sala final, onde conjuntos de telas, encerradas e parcialmente escondidas umas pelas outras, são classificadas e apresentadas em grupos colocados em carros de transporte, simultaneamente numa alegoria do atelier e num impasse de galeria durante a montagem, chamando a atenção para o processo que articula o momento e o lugar da produção com o momento e o lugar de exposição.

Esta exposição, apesar de não ser declaradamente uma antologia (que, pela dimensão nunca chegaria a ser), tem a feliz capacidade de nos colocar com grande evidência perante os caminhos e estratégias mais importantes e distintivos do trabalho de Vítor Pires Vieira.

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Pires Vieira
Trash — Lixo de Artista
Museu Colecção Berardo, piso 0, Lisboa
04|07|2019—06|10|2019
Curadoria de Sandra Vieira Jürgens

Lorenza Böttner — 
Requiem for the Norm

Overlooked until recently, Lorenza Böttner deserves a place in twentieth century art history. Paul B. Preciado — former curator at Documenta and transgender activist — made a valuable contribution assembling the monographic exhibition, the most comprehensible presentation of Lorenza’s work, ranging from academic works to the ones produced just before her in Munich, in 1994, and includes works from other artists who portrayed Lorenza, such as Joel-Peter Witkin, and a documentary that was broadcasted on German TV, a very important piece to bring context tho Lorenza’s oeuvre and a fundamental tool to help visitors in their quest for meaning.

Born as Ernst Lorenz Böttner in 1959 into a German family in Chile, lost both arms as a child. After the accident, her mother decided to go back to Germany so that he could have access to specialized therapies. Ernst was institutionalized along with the Contergan Children — babies born with modified limbs after their mothers have been treated with thalidomide. This was crucial for Ernst, as Contergan Children have been detached from society, “they were considered neither human nor children of their mothers” and were “spectacularised as invalids and deformed individuals”. Ernst didn’t fit in and this led to Lorenza’s birth as a cry for a disruptive life, truly apart from the protocol where, in rare cases, they were allowed to make sporadic appearances in society, always in minor conditions, performing limited activities, and living from people’s compassion. Lorenza opted to live away from the cripple paradigm, away from the freak show that placed the imperfect body in the center of a pity gaze, looked at as an exotic object. Lorenza became an artist and entered Kassel’s art school.

There is no point emphasizing any particular work in the show because Lorenza’s work stands as a whole or, to be accurate, Lorenza’s person and her oeuvre are an indivisible unit, a political artistic tool in which a body apart from the norm — the gender norm and the perfect body — reclaims the right to be visible, to become subject instead of object, the ultimate right to represent humanity. 

The exhibition covers four families of works than span across Lorenza’s career: Painting, made with her feet and defying the hegemony of the hand that ruled the entire history of art, something that shouldn’t be regarded as sterile exhibit of outstanding skills of a cripple gifted painter but, instead, as a complex political gesture, specially if we take into account that most of the paintings were part of an intricate performance that included dancing; Drawing, mostly made with her mouth in an exercise of intimacy and delicate precision — we must remember they were drawn a few inches from the face; Photography, which was mostly a mind game of auto-expression where Lorenza uses the body simultaneously as medium and a subject, creating personas frequently based on characters recruited in the history of art; and, finally, performance, that convenes her entire body and goes a step further than her photographic works.

Trough art Lorenza Böttner managed to bring to the foreground the dissident body — a double dissident body — that the norm have maintained hidden until then.

Lorenza Böttner
Requiem for the Norm
Württembergischer Kunstwerain, Stuttgart
23|02|2019 to 28|07|2019
Curated by Paul B. Preciado

Reviewed by
António Castanheira
Lisboa, Portugal

Image credit: Lorenza Böttner, Untitled, photography

Art Basel 2019

© antonio castanheira

Fotografias: @ António Castanheira

[publicado em versão reduzida na Umbigo Magazine de julho de 2019]
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A Art Basel, um ano antes de celebrar cinquenta anos de feira, continua a ser o melhor lugar para tomar o pulso à arte contemporânea. Nesta edição, cerca de três centenas de galerias, onde se contam as melhores e maiores da actualidade, ocupam quase trinta mil metros quadrados do Messe Basel — edifício de referência desenhado originalmente nos anos cinquenta por Hans Hoffmann e ampliado em 2013 pela reputada dupla de Basel Herzog & De Meuron — para mostrar a quase cem mil visitantes o trabalho de mais de quatro mil artistas.

Há cerca de um ano, David Zwirner, provavelmente o mais poderoso galerista dos últimos anos, defendeu numa conferência em Berlim que as galerias maiores deveriam subsidiar a participação das galerias menores nas feiras de arte. Rapidamente a Frieze e a Art Basel tornaram pública a sua vontade de desenvolver um sistema que respondesse positivamente a esta preocupação. Este ano a Art Basel inaugurou uma tabela de preços “deslizante” onde um stand pequeno, de 25m2, custa CHF 760 (± 670 €) por metro quadrado e um grande, de 124m2, custa CHF 905 (± 800 €). O preço fixo de 2018 foi CHF 830 (± 740 €). Adicionalmente, foi criado um desconto  que permitiu uma poupança de vinte por cento no preço de metro quadrado às galerias que participam pela primeira vez no sector principal. Nos sectores Statements e Feature, que funcionam como porta de entrada na feira para as galerias mais jovens, as poupanças situaram-se entre os dez e os vinte mil euros por stand, o que viabilizou a presença de alguns projectos incapazes de suportar o custo das edições anteriores. Segundo as previsões da organização, o sistema deslizante deve proporcionar às galerias menores uma poupança de 13%, que é equilibrado por uma penalização das maiores em 4%. Para além das implicações no negócio, é importante assinalar que este gesto reflecte uma preocupação de moralização e humanização do mercado da arte e marca uma diferença face ao que se passou, desde pelo menos os anos oitenta, em que o valor da arte disparou cavando um fosso cada vez mais difícil de transpor entre o grupo de artistas e galerias no topo e o grupo que, na base da escala, lutava por visibilidade e por um pedaço de mercado, criando as condições para que as galerias mais poderosas canibalizassem impunemente as mais frágeis aliciando os seus artistas mais promissores com um lugar num mercado de outro nível.

De um ponto de vista puramente estético, estas mudanças na componente financeira trouxeram à feira uma frescura nas propostas artísticas e contribuíram para mitigar uma das suas fraquezas: a predominância de um certo carácter doméstico e domesticado das peças que as galerias costumam trazer a Basel.

À semelhança das últimas edições Art Basel organizou-se em nove sectores, cada um com as suas especificidades mas todos contribuindo para a montra abrangente que é a feira.

Parcours

Samuel Leuenberger, curador nascido em Basel e fundador do espaço independente Salts, que dá a conhecer jovens artistas suíços e estrangeiros, preparou pelo quarto ano consecutivo a secção Parcours, um projecto que levou a arte contemporânea para fora do edifício da Messe e distribuiu um conjunto de duas dezenas de trabalhos nas imediações da Münsterplatz, no centro histórico de Basel. Parcours reflecte a escolha eclética do curador e tanto mostra trabalhos de talentos emergentes e pouco conhecidos do público da feira, como de artistas de créditos firmados.

«Conceber o Parcours começa sempre por uma caminhada no centro histórico de Basel — é uma coisa que eu faço com frequência mas, aqui, trata-se de uma caminhada de natureza diferente. Preocupo-me com o que significa implantar uma obra de arte no coração palpitante de Basel e, ao mover-me sem pressa, tento identificar as alterações no tecido urbano, como se levasse a cabo um levantamento anual.» Mas o curador adverte-nos que «Parcours não é uma exposição de escultura ao ar livre mas sim um projecto de dimensão urbana que responde à cidade como uma entidade cívica» e isto é fácil de perceber quando pensamos o quanto o contexto de cada uma das peças contribui para a construção do seu sentido mas também para a alteração que a sua presença torna efectiva na percepção de cada um dos lugares.

O percurso, que é derivativo e não linear, tem início com Staircase de Caitlin Keogh, uma intervenção site-specific estrita em que a artista transforma a escadaria do Teatro de Basel num trompe l’oeil dinâmico e poderoso, capaz transformar a percepção que temos da praça fronteira onde pontifica uma belíssima escultura de Richard Serra de 1972. Mais do que de uma peça instalada num lugar, trata-se de uma fusão que resulta numa única entidade indestrinçável.

Esta décima edição de Parcours tem como tema The Impossibility of Being a Sculpture e Samuel Leuenberger procurou questionar as intervenções dos artistas pensando-as enquanto objectos deslocados. O trabalho de Ron Terada You Have Left The American Sector , apresentado originalmente em 2011 no MCA de Chicago, faz parte de uma série de declinações do histórico placard colocado na fronteira este-oeste em Berlim aquando da divisão que se seguiu à segunda guerra mundial, série que desenvolve uma reflexão em torno das implicações sociais, políticas das divisões geográficas. A peça ganha um especial relevo pela sua implantação no extremo sudoeste da Mittlere Rheinbrücke, a ponte sobre o Reno construída em 1226, que sempre dividiu a cidade socialmente, com as classes sociais elevadas de um lado e as classes trabalhadoras do outro.

Uma outra estratégia espacial resulta da colocação da peça Dancing Cities (2018) de Dan Graham no centro da Münsterplatz. A peça faz parte de uma linha de trabalho apresentada pela primeira vez na La Biennale de 1976 e move-se na instável fímbria de território onde a escultura e arquitectura se interpenetram. A peça, pela sua escala, forma e materialidade, modifica totalmente o espaço da praça, enriquecendo a percepção pela fluidez interior/exterior, pelas transparências que, apesar do vidro incolor, nunca são absolutas e pela adição dos reflexos e refracções que multiplicam as presenças na percepção contrariando o vazio original do espaço urbano ao mesmo tempo que desafiam o cânone do Minimalismo onde o trabalho se inscreve.

Unlimited

Unlimited é a secção da Art Basel que, desde 2000, permite às galerias apresentar projectos que transcendem as limitações espaciais de um stand de feira tradicional. Com curadoria do nova-iorquino Gianni Jetzer, pelo oitavo e último ano, Unlimited apresenta um amplo espectro de trabalhos — de peças históricas de grande significado, como a instalação Penetrável Filtro (1972), de Hélio Oiticica, e Syntagma (1983), de Valie Export a Pharmacie (2019) de Pedro Tropa  — cobrindo materialidades e modos de expressão tão díspares como esculturas monumentais, pinturas de grande dimensão, projecções de vídeo imersivas, vastas séries fotográficas ou, mesmo, performances. Untitled é a secção da Art Basel com maior capacidade de surpreender, a secção que mais apela ao público que visita a feira sem comprar mas também ao público profissional institucional. É aqui que curadores e directores de instituições têm oportunidade de se confrontar com os trabalhos mais arrojados, não só dos artistas mais activos hoje mas, também, com trabalhos históricos que raramente foram mostrados e é aqui que os coleccionadores institucionais (ou particulares de grande envergadura) encontram os formatos que transcendem a escala doméstica.

A Art Basel, por todo o seu perfil e contexto, não costuma ser palco de intervenções polémicas ou com um cunho político evidente, mas o movimento viral #MeToo, com o reconhecimento do seu poder a ser reforçado pelo terceiro lugar na mais recente lista Power 100 da ArtReview — um ranking das personalidades mais poderosas no mundo arte em cada ano — teria de acabar por fazer a sua aparição na feira. Andrea Bowers, artista americana nascida em 1965, desenvolve um projecto de arquivo e documentação do #MeToo desde que o movimento começou a ganhar escala. A artista trouxe a Basel a instalação monumental Open Secret (2018) , uma iteração do projecto-mãe — que é uma colecção de pendões documentais, cada um exclusivamente dedicado a um acusado, preenchidos com imagens e textos que registam o teor das acusações e as respostas públicas que foram dadas. Esta peça era um contraponto ao ambiente geral que se vivia no pavilhão e o seu sucesso junto do público era atestado pela quantidade de gente que se detinha longamente na leitura dos textos.

Contrastando com a solenidade do trabalho de Andrea Bowers, o grego Andreas Angelidakis apresentou na feira Post-Ruin (Pink), 2019, uma instalação escultural dinâmica decorrente da série Demos, originalmente produzida para a Documenta 14 de 2017, composta por fragmentos arquitectónicos primários em esponja forrada a vinil que os visitantes reconfiguravam e usavam para se sentar ou deitar numa dessacralização da obra de arte.

Outra peça de grande impacto era a de Daniel Knorr, Laundry (2019). Um sistema automático de lavagem de automóveis foi transformado para, num happening a acontecer na feira, aspergir mecanicamente tinta sobre formas de automóveis construídas por telas, constituindo uma reflexão bem humorada sobre o passado pop da arte, sobre a pintura enquanto disciplina e sobre a mercantilização que impregna todas as vertentes da vida quotidiana.

Sempre surpreendente e arrojado, Paul McCarthy apresentou uma produção complexa de realidade virtual que provocou longas filas de espera por um lugar na sala onde o público podia aceder aos terminais de VR. Coach Stage Stage Coach VR experiment Mary and Eve (2017) prossegue as experiências que McCarthy tem desenvolvido e, a partir da captura de movimentos de duas actrizes, constrói um jogo psicológico alucinante que culmina numa viagem psicossexual de violação e humilhação.

Statements

Até 1995 a Art Basel tinha um sector de entrada, o Young Galleries. Em 1996 foi substituído pelo Statements, um espaço onde se concentram duas dezenas de galerias que apresentam obrigatoriamente exposições individuais de artistas emergentes, que encontram aqui o trampolim de visibilidade indispensável ao seu crescimento. Por esta secção passaram nomes como William Kentridge, Mariko Mori, Pierre Huyghe e o portugês João Onofre. Este ano, 18 galerias apresentaram as suas propostas. Em cada edição, há um prémio de 30 mil francos suíços (± 27 mil euros) atribuído  pela seguradora suíça Baloize ao melhor projecto e os trabalhos são oferecidos a instituições relevantes. Este ano o prémio foi atribuído a Xinyi Cheng e Giulia Cenci e as obras oferecidas à National Galerie-Staatliche Museen de Berlin e ao MUDAM no Luxemburgo.

Naturalmente, Statements é o sector da feira com trabalhos menos canónicos e aquele onde os visitantes podem encontrar obras mais disruptivas (ainda que sem o fôlego da grande escala dos que estão no Unlimited). A proposta da galeria Jan Kaps, de Colónia, que ocupava um stand de esquina ostensivamente aberto apenas com as duas paredes posteriores, incomodava quem passava com o trabalho perturbador de Berenice Olmedo — artista mexicana nascida em 1987 e que trabalha na Cidade do México. Anthroprosthetic: Or, the Prosthesis as Homo Genesis, um projecto mostrado originalmente numa forma um pouco distinta na galeria em 2018, reúne um conjunto de próteses ortopédicas usadas por pessoas com recursos limitados do seu país, objectos que preservam traços físicos dos seus utilizadores e que, num gesto duchampiano actualíssimo, interpelam e obrigam a reflectir sobre a condição humana, sobre a noção de normalidade, sobre a fragilidade do corpo e sobre a importância que a fisiologia tem na preservação da identidade do ser humano. No meio da euforia que caracteriza a feira, este gesto metonímico de Berenice Olmedo obriga-nos a uma travagem violenta e conduz a uma introspecção violenta.

Galerias

O maior sector da feira é o mais tradicional. Nesta edição, 225 galerias repetiram a presença, incluindo as portuguesas Cristina Guerra e Pedro Cera (que teve o melhor resultado de sempre), e 7 galerias estrearam-se no sector principal depois de terem estado presentes em edições anteriores nos sectores Feature e Statements. A fórmula dominante é conhecida: a esmagadora maioria das galerias apresenta uma ou duas peças de cada um dos artistas que escolhe cuidadosamente em função das expectativas de sucesso — comercial ou de afirmação internacional.

No entanto, 2019 trouxe algumas surpresas e maior terá sido, porventura, a galeria londrina Marlborough que apresentou um stand exclusivamente com obras de Paula Rego. É raro acontecer mas o momentum actual da artista suporta a decisão do galerista. Paula Rego terminou recentemente uma exposição monográfica na L’Orangerie em Paris, inaugurou no mesmo fim‑de‑semana da feira uma importante exposição individual na MK Gallery em Milton Keynes e, muito mais importante, acabou de ser anunciada uma exposição individual de grande alcance na Tate Britain para 2021. Paula Rego, aos 84 anos, surpreendeu ainda os visitantes com a apresentação das primeiras peças tridimensionais da sua carreira. A artista já tinha produzido peças escultóricas com a função de adereço/modelo para o seu trabalho de atelier mas nunca tinha apresentado como trabalho final uma escultura. No stand da Marlborough estavam duas esculturas de 2019 — Gluttony e Pride — à venda por valores a rondar os 300 mil euros — e uma peça que transitou do atelier para a galeria, Prince Pig (2006-19).

O resto do sector principal foi bastante conservador e o grande atractivo continua a ser a possibilidade de encontrar um pouco por toda a feira obras dos artistas mais importantes da cena contemporânea. Notou-se um decréscimo na presença da fotografia — o que se pode entender por, simultaneamente, estar a acontecer a Photo Basel — e a consolidação do crescimento da pintura. A feira deste ano também não se destacou pela abundância de obras-troféu. A peça mais mais visível e mais discutida foi Sacred Heart,  da série Celebration de Jeff Kooons, mostrada no stand da Gagosian com um segurança fardado em cada flanco e, embora a galeria não tenha divulgado o preço, corriam rumores que rondaria os 15 milhões de dólares. Jeff Koons tinha ainda uma outra peça icónica à venda no stand da Mnuchin — esta com preço conhecido de 10 milhões — o busto Louis XIV, da série de 1986 a que pertence Rabbit que recentemente foi vendida em leilão por 91 milhões de euros e estabeleceu um novo record para um artista vivo.

Ficção e Fabricação | Maat

[publicada em versão reduzida na Umbigo Magazine online]

english short version

Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitetura após a Revolução Digital é uma exposição construída por Pedro Gadanho e Sérgio Fazenda Rodrigues. Tem como pretexto a evocação das três décadas que se cumpriram sobre a invenção do Photoshop e a consequente banalização das ferramentas digitais na pós-produção em fotografia. A exposição ocupa a Main Gallery e a Video Room do Maat, fica patente de 20 de março a 19 de agosto de 2019 e apresenta 68 obras de quase cinco dezenas de artistas.

A proposta curatorial organiza a exposição em três secções e distribui-se espacialmente por três espaços, ligados por passagens mais estreitas, onde as obras são apresentadas numa accrochage arejada que reforça a individualidade dos trabalhos e convida a uma visita distendida e fluida.

Campo Expandido

A ideia de fotografia expandida tem sido fundamental para a legitimação institucional do medium fotográfico. Se as primeiras exposições acolhidas no museu ainda assentavam no suporte tradicional, rapidamente os artistas se esforçaram por alargar a materialidade e expandir o trabalho para fora dos limites da impressão em papel. Esta estratégia serviu de mediação e de ponto de intersecção entre os artistas que se interessaram pelo medium fotográfico e os fotógrafos que almejavam um lugar na galeria e no museu. Os trabalhos de Christian Boltanski, onde a fotografia é apenas mais um componente num contexto de objectos e ambientes que adquirem sentido no seu conjunto, são um exemplo histórico do primeiro caso e os de Nan Goldin, com as suas apresentações performativas de slideshows com banda sonora nos clubes nocturnos de Nova Iorque, um caso paradigmático do segundo, que é parcialmente replicado nesta exposição pela peça de Wolfgang Tillmans (Book for Architects, 2014), um diaporama multicanal tratado como uma colagem dinâmica projectada numa blackbox imersiva e dedicada |+|.

Em Ficção e Fabricação encontramos alguns exemplos ortodoxos daquilo a que se tem chamado fotografia expandida. Aglaia Konrad  (Concrete City, 2010) começa por fazer uma citação directa da obra maior de Lina Bo Bardi — o Museu de Arte de São Paulo |+| — aqui representada por modelos reduzidos do cavalete que a arquitecta desenhou para o museu e que se tornou um ícone, não só do design, mas da própria museografia pós-moderna, recorrendo a eles para nos oferecer um conjunto de memórias de matriz fotográfica e emocional materializadas em postais, maioritariamente escritos e circulados.

Numa outra peça Veronika Kellndorfer (Stilted House, 2017) voltamos a encontrar o cavalete, desta vez à escala natural, explorando uma sequência plena de tautologias onde uma fotografia monocromática da Casa de Vidro |+|— também de Lina Bo Bardi —, na sua exuberância de transparências e reflexos, é impressa numa chapa de vidro transparente que, por sua vez, funciona como um diapositivo gigante cuja imagem é projectada na parede da galeria, criando no visitante uma incerteza que abala a confiança na segurança, na finitude e na estabilidade das imagens fotográficas.

Ficção/Narrativas Sociais

Este núcleo diz respeito, sobretudo, ao alargamento e à humanização da fotografia de arquitectura, que não é um traço exclusivo da contemporaneidade (as vanguardas modernistas introduziam com naturalidade a figura humana nas fotografias de arquitectura, implicando a sua acção no sentido das imagens) mas adquiriu uma nova dimensão nas décadas mais recentes, especialmente quando os artistas passara a dirigir a câmera para os edifícios, chegando a uma desidealização a que a fotografia de arquitectura pura e dura não consegue chegar. A fotografia de arquitectura tout court é arquetípica; os exemplos que aqui encontramos, pelo contrário, adquirem um carácter humanizado pela introdução do — e no — quotidiano. O funcionário que Jeff Wall (Morning Cleaning, Mies van der Rohe Foundation, Barcelona, 1999) introduz na fotografia do edifício |+| faz dela uma fotografia do dia-a-dia (encenado, como acontece invariavelmente em toda a tableau photography de Jeff Wall) onde a arquitectura desempenha um papel importante mas já não é indiscutível que seja a protagonista. Nos trabalhos apresentados nesta secção os edifícios e as personagens lutam pelo protagonismo na imagem.

Um outro caminho identificável nas obras desta secção pode ser caracterizado pelo domínio de uma narrativa embebida nas imagens, um plano de conteúdo prévio (presente nos objectos antes de serem fotografados) que é preponderante e, em muitos casos, a criação da imagem não é mais do que um catalisador para essa mensagem, que frequentemente é política. É o caso evidente do Cinema Karl Marx, fotografado por Mónica de Miranda, que tem um histórico de inversões de sentido: de lugar e símbolo da dolce vita colonial (cuja nostalgia ainda é bastante fracturante e problemática na sociedade portuguesa das gerações retornadas), passando por ser emblema da independência e da afirmação ideológica característica do período que se lhe seguiu e culminando num véu poético, tecido pelo seu definhar funcional e sublinhado pelas enigmáticas figuras femininas assomadas à varanda que a artista coloca na imagem.

Fabricação/Reconstruções Digitais

A secção final da exposição conduz-nos a uma reflexão sobre um novo campo epistemológico e ético que se abriu em 1987, com o Photoshop, e que não cessa de nos inquietar. Se a fotografia sempre se serviu da Retórica |+|  para nos persuadir e manipular, com a naturalização da colagem verosimilhante, que as ferramentas digitais têm aprimorado, o sentido das imagens passou a ser construído através de um processo mais longo que inclui novas etapas e isso é particularmente visível nos trabalhos desta sala.

Os trabalhos de Isabel Brison e Beate Gütschow recorrem à mesma estratégia construtiva mas vão desaguar a lugares fenomenologicamente opostos, embora igualmente emblemáticos do drama contemporâneo da pós-verdade. Ambas as artistas partem de recortes de imagens arquitectónicas, de fragmentos autónomos de edifícios, para, através de uma delicada e cuidadosa montagem, construir novos edifícios. Nos dois casos, o plano da expressão é totalmente credível e só a racionalidade nos pode impedir de os tomar por verdadeiros. Na imagem de Isabel Brison (Maravilhas de Portugal #3, 2008) estamos perante uma construção, que a perceção valida e nos diz que existe, perante uma imagem que representa um edifício que não pode existir, não tanto pela dimensão tectónica e estrutural, mas pelo contra-senso social que nos impede de admitir no mesmo edifício pedaços de realidades socioeconómicas incompatíveis. No trabalho de Beate Gütschow (S Nr.14, 2005) nenhuma racionalidade nos compele a recusar a verdade do edifício que nos é apresentado e apenas a nossa aculturação é capaz de nos advertir que se trata de um edifício moderno que não existe mas que podia, perfeitamente, existir.

Outra exploração da retórica da imagem é evidente nos trabalhos da série WalmArt (2006) de Jonathan Lewis onde, através de um processo tão simples como a pixelização de fotografias do interior de supermercados de marca, somos alertados para o poder redutor que a acção do marketing tem sobre as nossas vidas ao mesmo tempo que somos confrontados com com a solidez impositiva das marcas. Lewis testa os limites da simplificação em busca do estado limite onde as imagens já perderam todo o detalhe e particularidade sem, contudo, perderem a legibilidade e a faculdade de nos remeter para uma situação real da nossa condição alienada de consumidores.

Ficção e Fabricação: Fotografia de Arquitetura após a Revolução Digital é uma excelente oportunidade para ver em Lisboa obras de referência de artistas contemporâneos que usam a fotografia mas, também, para descobrir autores menos conhecidos que nos apontam direcções menos exploradas. Uma das grandes qualidades desta exposição é o carácter descontraído da curadoria, que não faz uma interpretação demasiado literal, tanto do conceito unificador da exposição como dos seus núcleos internos,  e permite que as obras nos convidem a explorar territórios marginais que são, por isso, bastante fecundos.

Fotografias: © antónio castanheira

Sparr | David Grades

[folha de sala] 

A primeira coisa que precisamos de saber sobre sparr, o trabalho que David Grades apresenta no minimália, é que se trata de uma série de retratos de lutadores, de atletas envolvidos em desportos de combate, orientado por António Júlio Duarte num projecto do Atelier de Lisboa.

É importante saber, também, que David Grades não instalou um photo booth à saída do balneário, onde os atletas passavam a caminho do ringue, para fazer uma sequência mecânica de retratos com uma uniformidade de parâmetros técnicos que fizesse o conjunto sobrepor-se a cada unidade. David Grades fotografou os atletas individualmente em momentos distintos ao longo de um ano e em muitos lugares diferentes e, é fundamental, sabe o nome de cada um.

Cada retrato é um projecto em si, do mesmo modo que cada pessoa fotografada é um indivíduo complexo, único, relacional, com uma identidade e com um passado exclusivo. Se em August Sander o que era importante era o traço comum, o que havia de geral ou de universal nas pessoas retratadas — e que por isso não tinham nome, tinham título —, neste trabalho a importância está no traço distintivo, na humanidade, no que cada lutador tem de particular, de individual e não de tipológico.

Teria sido fácil, se David Grades o tivesse pretendido, explorar o pitoresco dos rostos suados, marcados, massacrados e desalinhados depois do combate. Seria fácil impressionar quem vê as fotografias pelos traços deixados pela força do confronto, pelo espectáculo da violência que faria dos retratos imagens indiciais de uma actividade ou até pelas tatuagens tão banais e quase obrigatórias neste universo. Mas não foi isso que interessou o artista. O que ele nos traz aqui são pessoas tão comuns quanto nós, pessoas que podemos encontrar na mercearia, que têm a sua identidade construída e isso é visível nos pequenos detalhes que os individualizam.

Ao contrário do que é mais frequente no retrato, onde o espaço tem o seu próprio lugar, onde, no plano da expressão, encontramos um espaço bidimensional que envolve a figura e lhe permite respirar, nestes retratos temos um primeiríssimo primeiro plano, um enquadramento tão fechado que faz com que a figura seja o todo. David Grades apresenta-nos uma visão crua e literal dos seus sujeitos, um olhar que, pela sua neutralidade, torna evidente a condição humana de cada um dos lutadores.

Sparr | David grades
Minimália, Lisboa maio de 2018

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